Amor, Estranho Amor




Amor, Estranho Amor

Ela chegou cabisbaixa trazendo um buquê. Jamais gostei de flores, mas com o tempo acabei me acostumando. O tempo faz com que nos acostumemos a tudo.
Permaneceu alguns instantes de pé, ainda cabisbaixa e imersa em um silêncio que, de tão denso, deixava transparecer, por entre sua cortina negra, um certo receio, um temor canhestro, talvez culpado, culpado por algo que o perfume das flores tentava em vão dissimular.
Por fim sentou-se, suspirou e ergueu a face: tinha os olhos transbordados em lágrimas que, pouco a pouco, foram transfigurando o seu rosto com caminhos parecidos com rios, rios negros deslizando por um leito árido, difuso, tortuoso.
Seus lábios sedentos aguardavam aquela inundação que nunca vinha, que não matava a sede daquela boca que calava tempos, sóis, sentimentos, palavras sepultadas vivas em um terreno infértil. Nada nascia, nenhum sussurro, apenas silêncio.
Retirou o lenço do casaco e enxugou os olhos. Olhou-me daquela vez tão ternamente, que não pude deixar de achá-la mais linda do que quando nos separamos, há cinco anos.
Enfim, ela sorria.
Deu-me ótimas notícias das crianças. Contou-me que Paulinho já freqüentava a sua tão sonhada faculdade de medicina e que Lucinha, a minha pequena Lucinha, já estava com tudo acertado para o seu casamento no início do ano. Disse-me mais uma infinidade de coisas relativas às crianças, que não pude ouvir bem, porque foram ditas em meio a lágrimas que novamente brotavam nos olhos de minha eterna namorada.
Em meio a soluços dissimulados, confessou-me que sentia saudades e maldisse a vida seguidas vezes, ao mesmo tempo em que amassava entre as mãos as flores que trouxera para mim.
Calou-se um tempo e chorou como se estivesse arrependida ou por demais cansada daquela vida vivida longe de mim. Disse-me que se sentia muito sozinha. Paulinho, agora na universidade, passava muito pouco tempo em casa; Lucinha iria se casar no início do ano... Ela não suportaria a solidão.
Quis dizer que eu também me sentia assim, raras eram as visitas que eu recebia, pouquíssimos amigos, um ou outro parente, de vez em quando as crianças, e ela, sempre ela...
Eu também estava muito sozinho. Mas não disse nada. Deixei que ela chorasse um pouco... um pouco mais que das outras vezes, mas, quando se recompôs, tinha novamente aquele seu sorriso único, que nenhuma outra mulher conseguiria apresentar. A pele alva, os olhos lindos. Outra vez minha amada, minha eterna e inseparável amada.
Olhou-me calada, como se sentisse pena de mim. Quis recriminá-la pelo ato, mas ela foi mais rápida que o meu iminente protesto e novamente se pôs a falar.
Perguntou-me se eu me lembrava do Marcos. Como não me lembraria?
Ele sempre jantava conosco nos fins de semana, as crianças o adoravam. É claro que eu me lembrava. Era meu melhor amigo, amigo de sinuca, do chope de fim de tarde no Leblon, amigo de lida...
Estavam prestes a namorar.
Aí residia a razão daquele suspeito remorso calado, daquela culpa cabisbaixa que o perfume das flores tentava esconder. Aí estava a dor de todo aquele pranto.
Senti algo me incomodando, talvez ciúme, talvez medo de perdê-la para sempre.
Mas nós já nos havíamos perdido um do outro há tempos; já não havia caminhos que nos levassem a um mesmo fim. Éramos impossíveis um ao outro. Havíamos nos desprendido um do outro como uma fruta se desprende da árvore e apodrece no chão.
Ela ainda se mantinha florida, ainda corria em seu tronco a seiva que talvez pudesse me reanimar, avivar-me para mais primaveras, para mais flores, para que eu fosse mais frutos... Mas eu já apodrecia inerte, sem forças nem esperanças de um dia germinar.
Era preciso aceitar tudo. Não é difícil aceitar, fazer-se aceitar geralmente é mais complexo. Foram anos e anos de convivência. Não, não de convivência: de cumplicidade. Sim, sempre fôramos cúmplices um do outro.
Era preciso aceitar.
Porém, quando pensei em dizer que até me sentia feliz por ela, por nossas crianças, por sua visita, por tudo, ela se ergueu. Olhos inchados de tanto pranto, as flores ainda na mão, olhou-me ternamente, baixou o véu negro sobre seu belo rosto e, com um gesto singelo, postou as flores sobre meu túmulo e partiu.

Rinaldo Brandão.


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