Eu, por mim mesma

Sou a Eliana, que nasceu no interior do estado do Paraná, que tem quatro irmãos e dois filhos, que estudou na escola rural Martim Afonso de Sousa, que no trajeto diário de 4 anos para a escola assistiu ao asfaltamento da saída para Guaíra, que presenciou a mecanização das terras para a produção de soja, que viu as queimadas e a fuga dos preás... que adorava o cheiro da hortelã sendo ceifada pelos alfanges e que assistiu na escola ao primeiro filme da sua vida "Se meu fusca falasse", que escorregava nos barrancões para o delírio da mãe que tinha que lavar as roupas vermelhas da terra roxa. Que catava vaga-lumes cantando "bagalém tem tem" enquanto as vizinhas rezavam as novenas... que brincava de anel, de mês de boca de forno... que viu papai-noel de sobretudo preto e não vermelho, e depois com túnica branca, no breu da noite, perguntando entre dentes sobre nós.... que descobriu o ninho que o coelhinho tinha feito no meio das roupas da nona... que teve uma catequista de nome Dóris inspiração para o nome da própria filha, que levou soco no estômago da Fátima, mas que não se desgrudava dela, que ficava incrédula sobre a chegada do ano dois mil, pois lá, estaria com 33 anos, imaginem!! Que soltava barquinhos de papel na enxurrada com os irmãos e fazia pelotas de argila e colava pétalas de gerânios nas unhas! Sou aquela que comeu goiaba e ingá e mamão e morango e lima da pérsia colhidos do próprio pé, sem lavar fruta nem mão... que apreciava demais o pomar do seu Pedro, com suas poncãs imensas, que ficou com dó do Antônio Carlos quando ele apanhou por ter se cortado com a enxada, que achou poética a inédita geada de 73 que detonou o cafezal do nono... procurava pedrinhas coloridas no monte de areia e q viu a mãe ir ao hospital com vestido verde de bolinhas brancas para ter a irmã “meio-gêmea”... que foi à escola de saia de pregas e camisa branca de gola na garupa da bicicleta do Evi e que tinha pavor do prof. Paschoal, diretor austero que conferia a cor das meias... a que ouvia a rádio Jornal, e não só isso, participava dos programas ao vivo, acreditem. Que achava o máximo a calça Lee da tia Luiza... que teve vestido de kombi e tirou foto com o rádio...
A menina que foi ao casamento da Teresa com o Auro, que conheceu a senhorita Shinoda, corcunda por conseqüência da Bomba Atômica, que amava as sempre-vivas naquela chácara a caminho da escola... que atravessou pinguela para ir ao velório do coleguinha de escola que morreu de crupe... que erguia as folhas da violeteira para conferir as violetas e que era apaixonada pelo pé de jasmim, e que, por outro lado, não simpatizava com o pé de marmelo muito menos com os de pêssego... que ouviu o avô tocar o Hino Nacional com folha de pêssego, assim como também o louro cantando o mesmo Hino, que ouvia rádio e repartia a mangueira de ouvido com os irmãos, pacificamente, pelo que se lembra... que ouvia com admiração a meia dúzia de compactos de vinil que o pai obteve a duras penas... que se surpreendeu com o primeiro supermercado "pegue e pague" da cidade, que viu voarem panfletos do mdb em prol do Koite Dodo, que observava a quilômetros os cortejos de miniaturas de carros rumo ao cemitério, que esquartejava grilos e fazia grinaldas com flores de café, e que comia o café ainda vermelho, porque era dulcíssimo, que ganhou como prêmio de maior cdf da história da antes mencionada escola uma linda boneca toda de plástico, e um livro chamado O gato azeviche que não canso de procurar sem encontrar, que até hoje não se conforma com aquele 99 atribuído pela prof. Tereza na prova só porque escreveu muinto e não muito, que tomou capilé e comeu bolo com confeitinhos coloridos, que usou vestido de xadrezinho laranja e azul, coisa mais linda do mundo, e segurou o canudo de conclusão do primário para a foto eternizante... que passou a infância cercada de pessoas maravilhosas, simples, que conversavam horas na roda de chimarrão... sou a menina que acompanhava a mãe quando ia à mina lavar roupa com a dona Isabel, que se encantava com as libélulas que voavam sobre o laguinho, que catava contas para fazer colares e que ficava a tarde toda por ali, só de companhia. Que conheceu a taboa e o chapéu-de-couro, e o funcho e a erva-doce, e dezenas de outras espécies. Que com cesta de vime, acompanhava o nono na colheita de uva niágara do parreiral que dividia o terreno do lado sul, enquanto ao norte a divisa era marcada por pés de araucária. Quanto ao lado leste, imensos abacateiros margeavam a estrada poeirenta onde raras vezes no dia se elevava o pó vermelho por conta da passagem de carros... Que catava caramujos no meio do cafezal e ouvia neles o som do mar desconhecido, do qual nem foto havia visto... que ouvia O guarani na abertura d’A voz do Brasil -“Em Brasília, 19 horas” - e que se calava quando as mulheres ouviam a radionovela. Que pegou gosto pela leitura por ver a mãe lendo A pata da gazela, Éramos seis e outros títulos (de onde os emprestava??). Que quis queimar etapas na escola por não gostar de fazer fumaça de trator, pois já tinha a coordenação motora adequada para a caligrafia. Que declamava o “Ich bin kleine” e brincava de Tango tango tango morena é do carrapicho... lia Seleções e Anuário evangélico... pintava com as canetinhas Silvapen de seis cores e molhava o lápis de cor na língua para obter uma tonalidade mais vibrante... que conheceu a cor de maravilha e a cor de abóbora... A menina que muitas vezes precisava de um “acabamento” após o banho... que convivia com o ruído forte do gerador de eletricidade e que via a luz se esvair aos poucos até apagar-se sem interruptor... (dizia o avô que a vida também se esvai dessa forma...) Que quando se feria e o mertiolate não resolvia, entregava-se ao santo “restofoida, cregofoida...” que tudo curava... a que presenciou o milagre de um papel mergulhado num líquido se transformar em fotografia em branco e preto... um estúdio dentro de casa, muitas peças, muitos recipientes, papel branco...líquidos, e a revelação da imagem! Fantástico!!Monóculos - coisa mágica! Caixas de fotografias!! E a televisão? O telefone?? O que eram?!

Comments

  1. Um texto precioso, muito sensível, emocionante, desses que têm o poder de nos trazer à luz imagens tão claras quanto as do descrito milagre das fotos, que se revelam sobre o papel que estava em branco, na sala escura de nossa imaginação.

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  2. Muito lindo.Todo um percurso contado de uma maneira mágica.

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