O moço que não tinha nome
Caravaggio - Rapaz levando um cesto de frutas
O moço que não tinha nome
Era um moço
que não tinha nome. Nem nunca tinha tido. Um moço que, não tendo nome, também
não tinha rosto.
-Psiu! -
chamavam-no as pessoas.
E ele,
acostumado desde pequeno, atendia.
Porém, quando
se aproximava, quem o tinha chamado via em lugar do rosto dele seu próprio
rosto refletido, como num espelho. E enchia-se de espanto.
Assim, sem
olhos ou sorriso que fossem seus, ninguém conseguia escolher um nome que ele se
ajustasse, tornando-o único, impossível de ser confundido com qualquer outro.
Era muita
ausência para ele carregar. E cedo decidiu que, tão logo estivesse crescido,
dono enfim da sua vida, partiria à procura do rosto que lhe pertencia e que,
certamente, havia de estar perdido em alguma parte do mundo.
Chegada a
idade, juntou suas coisas, saiu da aldeia e começou a andar.
Andou e andou.
Nos castelos que lhe davam hospedagem, examinava ansioso os quadros e as
tapeçarias, aproximava-se atento das esculturas, mesmo as mais miúdas que
enfeitavam às vezes uma sopeira de prata ou o cabo de um talher. Quem sabe,
entre tantos cavalheiros retratados, entre tantos homens pintados e bordados,
não estaria algum cujo rosto, por engano ou descuido, fosse o seu? Até sobre os
bastidores das damas se debruçava, na esperança de que o ponto que vinham de
fazer estivesse arrematando um nariz, o traço de uma sobrancelha que a ele
caberia.
Desse modo
viajava, fazendo seu rumo como quem atravessa um rio pulando de pedra em pedra.
Passava de uma
cidade a outra, de uma casa a outra, sempre procurando, nas famílias que se
reuniam ao redor das lareiras, nas multidões das feiras, e até nos broches de
esmalte que enfeitavam os decotes, nos camafeus e nas pedras entalhadas dos
anéis.
Sem nunca,
naqueles anos todos, afastar seu caminho da procura.
E nesse
caminho, um dia, encontrou uma moça que voltava da fonte.
Ia tão atenta para não entortar o
cântaro equilibrado no alto da cabeça, que nem o viu chegar pela trilha. E
quando ele se aproximou, oferecendo-se para carregar o cântaro, foi com
surpresa agradecida que encarou o rosto vazio. Mais do que com espanto.
Andando
devagar, para prolongar a caminhada, o moço acompanhou-a até em casa. Mas na
manhã seguinte, bem cedo, foi esperá-la na fonte. E quando ela chegou,
novamente se ofereceu para carregar o cântaro.
Assim
aconteceu também no outro dia, e nos que vieram depois. Agora já se demoravam
sentados à beira da nascente, conversando sem pressa, enquanto o tempo escorria
junto com o regato. E a cada novo encontro, ela olhava os próprios olhos
refletidos nele e os via ficarem mais brilhantes, olhava a sua boca e só lhe
via sorrisos.
Pouco a pouco,
a ausência do rosto foi perdendo a importância. O moço tinha tantas coisas para
contar, tanta doçura na voz, que ela passou a achá-lo mais e mais bonito. Era
como se nada lhe faltasse.
Nem mesmo o
nome. Pois não precisava chamá-lo, já que sempre o encontrava à sua espera, não
importava a hora em que chegasse.
Porém, na
fonte, começavam a boiar as primeiras folhas mortas. O regato, que tinha levado
o verão, lentamente levou o outono. E afinal o inverno chegou, engolindo as
tardes em seu ventre frio. Breve a fonte gelaria. E a moça percebeu que, sem
água para buscar, não teria mais desculpa para sair de casa.
Envolta no
xale, ainda foi à fonte durante alguns dias. Mas naquela manhã em que as
beiradas do regato começavam a fazer-se de cristal, o medo de perder o moço
atravessou-a como um vento. Quis retê-lo, chamá-lo. Em ânsia estendeu-lhe as
mãos. E quase sem sentir, num sopro, Amado! foi o nome que lhe deu.
Ondejou seu
reflexo no rosto do moço.
Lentamente,
seus olhos espelhados perderam a nitidez, desfez-se o contorno dos lábios.
Naquele vazio, só restava uma névoa. E na névoa, trazidos de longe pelo chamado
de um nome, começaram a aflorar duas sobrancelhas espessas, depois a aresta de
um nariz, a sólida linha de um queixo, a ampla testa.
Traços cada
vez mais nítidos, desenhando o rosto enfim encontrado.
Pingentes de
gelo formavam-se nas folhas.
Adensavam-se
as nuvens. Mas ele, o homem que agora tinha rosto e nome, sorria como um sol.
Marina Colasanti
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